Análise realizada com 160 amostras de todo o estado utiliza
técnica desenvolvida na Inglaterra para rastrear as regiões de onde o DNA
recebeu contribuição.
Por Nícolas Paulino e Alessandro Torres, G1 CE
Uma pesquisa inédita e pioneira no Brasil revelou, por meio
de mapeamento genético, qual é a origem do DNA cearense. O estudo “GPS-DNA
Origins Ceará” detalha que, na fusão genética da composição do cearense,
predominam as influências do branco europeu descendente de países nórdicos. Em
seguida, vêm os ameríndios oriundos da Ásia e o negro africano, principalmente
do tronco banto.
Ao longo de 10 meses, foram coletadas 160 amostras de saliva
de cearenses de todas as regiões do Estado, incluindo grupos étnicos, como
indígenas e quilombolas, e algumas personalidades. A pesquisa foi registrada na
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e os materiais foram
enviados para análise em um laboratório especializado em Ohio, nos Estados
Unidos.
Um dos objetivos do estudo era responder à pergunta-chave
dos estudos de Parsifal Barroso no livro “O Cearense” (1969). À época, o autor
se valeu de documentos e outros registros para construir sua teoria. Agora,
mais de 50 anos depois, a tecnologia permitiu uma análise mais profunda das
hipóteses.
A ferramenta Geographic Population Structure (GPS) escaneia
o DNA e triangula coordenadas geográficas para descobrir onde ele foi forjado e
a quais bolsões (agrupamentos) genéticos pertence. O método entende que os
bolsões passaram por misturas ao longo da história e tenta combinar a
informação genética a um banco de dados de mais de 100 mil assinaturas de DNA.
Segundo o geneticista israelense-americano Eran Elhaik,
criador do GPS, o método é preciso e consegue recolocar 83% das populações no
mundo de volta a seu país de origem. Luís Sérgio Santos, professor da
Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador da pesquisa, explica que os
exames das amostras cearenses permitiram a identificação de 28 bolsões.
Dispersão de grupos
Conforme o rastreamento, as regiões que tiveram mais força
na identidade cearense foram a chamada Fenoscândia - que abrange Noruega, Suécia,
Finlândia e Dinamarca - e o sul da França. Na segunda posição, fica o
ameríndio, que provém da Sibéria e entra no novo continente por meio do
estreito de Bering, uma ponte natural entre a Rússia e os Estados Unidos.
“A colonização do Brasil veio da Península Ibérica, mas a
pesquisa, de certo modo, desconstrói essa tese. Ela mapeia até o ano 400, então
é um tempo muito anterior à fundação de Portugal. Os resultados mostram que o
branco europeu que colonizou o Brasil era escandinavo, viking, visigodo, e antes
disso, alemão. Por serem predadores, destruidores e impassíveis, eles deram um
banho genético na Europa”, explica Luís Sérgio.
Uma família que mora no Cumbuco, na Região Metropolitana de
Fortaleza, representa bem essa mistura. Thor, de 6 anos, é filho do dinamarquês
Peter Aller com a cearense Ana Paula Bertuleza, que acredita ter sangue
indígena e negro. “Fisicamente, ele é completamente o pai, mas ele também tem
muito um jeito cearense porque gosta de comer farofa e feijão preto e de ir
para as dunas”, ri a administradora.
O pai ficou surpreso com o resultado da pesquisa, pois
acreditava que portugueses e holandeses seriam os maiores influenciadores no
Ceará. “O cruzamento de portugueses e vikings é a origem mais plausível”,
considera. Ana Paula emenda: “Dentro de casa, o Thor é dinamarquês, mas do lado
de fora é cearense”. O menino pratica kitesurf e, segundo a mãe, não tem medo
do mar - provavelmente uma herança dos ancestrais navegadores.
Mas, se o Ceará tem predominância de ancestrais europeus,
por que não há tantos cabelos loiros e olhos azuis? Thor, por exemplo, tem
olhos castanhos. A resposta, conforme Luís Sérgio Santos, está na força de
alguns genes.
“O nosso índio tem uma genética muito forte. Ele ‘dilui’ o
branco e cria o pardo. Esse gene ameríndio está em todos nós, em maior ou menor
quantidade”, garante.
Heranças
O médico Evangelista Torquato, especialista em reprodução
humana e responsável técnico pela pesquisa, considera que o estudo ajuda a
responder à velha pergunta “de onde eu vim?” e pode ter aplicações na área
médica. “Determinadas comunidades no mundo têm certos tipos de doenças, como
judeus e negros. O próprio nordeste cearense tem doenças genéticas mais
específicas que estão na nossa ancestralidade”, afirma.
Luís Sérgio Santos acrescenta que, apesar da contribuição
histórica na formação do brasileiro, o negro não teve tanta força no Ceará. As
maiores influências são de bantos do Congo, na África subsaariana, e de outro
povo que habitava a ilha de Madagascar. “Ele faz um fluxo interno no continente
africano e acaba chegando por meio da escravidão”, diz.
Uma hipótese para a baixa influência do negro no Estado está
na própria leitura de Parsifal Barroso.
“O Ceará demorou muito a ser colonizado e é envolto por
serras, o que o autor acha que retardou o processo de colonização. Além disso,
nossa mão de obra era mais indígena. Quem cuidava da pecuária eram os índios, e
praticamente não tinha agricultura por causa da seca”, conta Luís Sérgio.
Jeovany Férrer, membro da Associação dos Remanescentes de
Quilombos de Alto Alegre e Adjacências (Arqua) e mestrando em Antropologia,
endossa que a presença negra no Ceará foi diferente de outras capitanias: eles
eram mais atuantes nas casas-grandes e em outros termos econômicos. “Há um
senso comum de que não há negro no Ceará. Foi uma ideia muito alimentada e que
talvez ainda seja exportada, mas que os movimentos quilombolas tentam
combater”, reflete.
Mesmo com a suposta pouca presença, avalia, os negros
deixaram marcas profundas na linguagem, na religiosidade e na valorização
cultural do Estado. “Muitos elementos são acionados para a nossa formação e
contribuem para alicerçar essa identidade negra, que passa a ser reelaborada
também com afirmação política”, afirma.
Outra que se orgulha das próprias raízes é a Cacique
Pequena, liderança dos índios Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz. Ela foi uma das
cearenses que forneceram amostra para a pesquisa. “A gente tem que lembrar que
é índio, que nasceu aqui e não pode deixar de ser, que não pode ser um branco
lá de fora. A gente se preserva na dança, nas falas, de geração em geração.
Vivemos dentro dessa união, dessa harmonia. E eu venho arrastando o tronco
velho do povo que viveu há mil anos atrás”, ressalta a cacique de 74 anos.
Compreensão do passado e do presente
Para Igor Queiroz Barroso, presidente do Conselho
Administrativo do Grupo Edson Queiroz e neto de Parsifal Barroso, desvendar a
origem do cearense por meio da ciência é uma forma de compreender não só o
passado, mas o presente. "A origem vem para você poder revelar, se
aproximar da verdade. Será que a caatinga é que forma o cearense? Sou um judeu
brasileiro por isso ou por aquilo? Tenho braquicefalia porque venho de
determinada raça ou porque durmo na rede? Isso é ciência, trazer respostas
através de testes”, pontua.
Além da contribuição científica, a conclusão do estudo é uma
realização pessoal para Igor, pois expandiu os horizontes já indicados pelo
avô. “A pesquisa retorna 40 mil anos, antes dos nossos colonizadores. Vai muito
além do que Parsifal imaginou que se poderia chegar. Estou trazendo a pesquisa
do meu avô um pouco mais próxima da verdade, e me sinto feliz por isso”,
celebra.
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